Abdias Nascimento: filho de sapateiro e neto de escravizadas virou ícone mundial da luta contra o racismo
14/03/2025
(Foto: Reprodução) Há 111 anos nascia em Franca (SP) o ativista, político e ator conhecido por criar o Teatro Experimental do Negro e pela defesa de ações compensatórias históricas. Abdias Nascimento: como foi a infância do ativista na luta contra a discriminação racial
Década de 1920, Franca, interior de São Paulo. Aos 14 anos, o jovem Abdias Nascimento (1914 - 2011) tinha se formado em contabilidade, apesar das privações de uma família constituída por mulheres livres da escravidão apenas algumas décadas após a abolição no Brasil.
Foi quando recebeu a oferta de ser professor em uma escola rural para imigrantes italianos. No dia combinado, um carroceiro vai buscá-lo, mas Abdias se recusa a seguir viagem porque o condutor ordena que ele, negro e pobre, fosse com as galinhas, os mantimentos e as sacas, na parte de trás do veículo, tal qual uma mercadoria.
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Anos mais tarde, o mesmo jovem exposto a tamanho racismo ganharia o mundo como um dos maiores nomes da luta pela igualdade racial, por meio de sua arte, de sua produção intelectual e de sua atividade política.
Abdias Nascimento aos 4 anos, em Franca, SP. Foto de 1918.
Acervo Abdias Nascimento/ IPEAFRO
"Ele identifica, analisa e descreve o que é o racismo brasileiro, o conceito do genocídio, por que aplica-se ao negro brasileiro, o quanto não é uma questão só de morte física, mas também cultural, espiritual, psicológica", afirma Elisa Larkin Nascimento, viúva de Abdias e presidente do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro).
Esta reportagem faz parte de uma série especial sobre e a trajetória do ativista, intelectual, ator, escritor e dramaturgo Abdias Nascimento, que completaria 111 anos nesta sexta-feira, 14 de março.
À frente de um dos legados deixados por Abdias, que morreu em 2011 aos 97 anos, a norte-americana radicada há décadas no Brasil é a responsável pela curadoria de uma exposição, em cartaz até junho no Sesc de Franca, que reconta uma parte da trajetória do ilustre filho por meio de 70 pinturas do intelectual, que em vida expôs em museus de Nova York e da Grã-Bretanha.
As mesmas pinturas fizeram parte de um dos quatro atos dedicados ao artista em um dos espaços do Museu de Arte Contemporânea de Inhotim, em Minas Gerais."Temos muito carinho por Franca, por ser o lugar de nascença do Abdias e um local de um movimento negro muito ativo, muito criativo", afirma Elisa.
Referência internacional na causa pan-africanista, movimento mundial de reparação dos povos africanos colonizados, Abdias, entre outras conquistas, foi indicado ao Nobel da Paz em 2009, além de ser um dos fundadores do Teatro Experimental do Negro e um dos precursores de políticas públicas como as cotas raciais, a criminalização do racismo e a instituição do feriado nacional da Consciência Negra.
"Ele reconhecia os avanços que houve, mas sempre reconhecia que haveria muito mais a se fazer para se chegar a uma situação de justiça verdadeira, de reparação para os povos africanos."
Pinturas de Abdias Nascimento durante exposição realizada no Instituto Inhotim, em Minas Gerais, em 2023
Rodolfo Tiengo/g1
A infância em Franca
Abdias nasceu em Franca em 14 de março de 1914 e foi um dos sete filhos do sapateiro e músico José Ferreira do Nascimento e da doceira Georgina Ferreira do Nascimento. "Os dois eram mineiros. O pai era de Formiga [MG], e a mãe era da antiga Uberabinha, hoje Uberlândia [MG]", afirma Elisa.
Além disso, tinha na família avós que tinham sido escravizadas. José Ferreira era o "filho natural" de Esmênia, engravidada por um senhor de escravos que não assumiu a paternidade da criança.
"Abdias contava que o pai dele tinha uma vergonha muito grande de ser o tal do filho natural, porque ela era uma pessoa escravizada que foi abordada, que foi agredida sexualmente, pelo filho do senhor."
Georgina era filha de Francelina que, anos após a abolição, foi tratada como "doida" e, em meio a concepções eugenistas que contaminavam o pensamento da época, foi internada diversas vezes no Juqueri, um hospital psiquiátrico da Grande São Paulo conhecido por violações de direitos humanos.
"O racismo lá era feroz. A pesquisa nos registros do Juqueri mostra como as pessoas negras eram admitidas. Haveria um registro da admissão e depois eram completamente abandonadas", diz Elisa.
Nesse contexto, Abdias passou uma infância simples e ajudou a família atuando em várias ocupações, de entregador a atendente com entregas, mas conseguiu completar os estudos até se formar em contabilidade no Ateneu Francano, por meio de uma bolsa.
Foi logo depois dessa formação que ele conseguiu a proposta de trabalho para dar aulas em uma fazenda da região, uma oportunidade que poderia garantir mais recursos para a família, mas que acabou com o episódio de racismo relatado no início desta reportagem e também com a decisão de se alistar no Exército para poder se mudar para São Paulo.
"Ele saiu de Franca em grande parte por conta de um incidente de racismo quando ele tinha de 14 para 15 anos. Foi convidado para esse trabalho onde ele ia ganhar mais do que qualquer um dos adultos da família dele. (...) Ele se recusou a ir, criou um problema para a família, porque iria ganhar um bom dinheiro lá, mas não dava para ele aceitar isso, e aí então depois de tentar outras coisas, resolveu sair de Franca e, para escapar dessa situação, se alista no Exército."
À esquerda, Abdias Nascimento, na época em que serviu o Exército após deixar Franca. À direita, foto do ativista de 1978.
Acervo Abdias Nascimento/ IPEAFRO
Ativismo na arte, na política e na academia
O período de passagem pelo Exército, onde Abdias chegou a lutar pela Revolução de 1932, somente reforçou as ideias que mais tarde o inspirariam a atuar como intelectual e artista. Além do racismo que presenciou na ridicularização dos jovens negros alistados, um episódio em particular definiria o que estava por vir em sua vida.
Em 1935, ao questionar a proibição de entrar em uma festa de carnaval pela porta da frente, por ser negro, acabou se envolvendo em uma confusão com um delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).
Preso, agredido e excluído do Exército, ele se mudou para o Rio de Janeiro, onde concluiu a faculdade de economia e onde a luta pela igualdade racial tomaria forma em sua produção intelectual e artística, a partir dos anos 1940.
Ao longo da vida, Abdias editou jornais, escreveu artigos, livros, promoveu congressos mundo afora, produziu peças, pintou quadros e fundou uma companhia de teatro - o Teatro Experimental do Negro -, tudo isso inspirado em ideias da luta antirracista.
Dentro desse contexto, ao menos duas expressões são fundamentais para o entendimento de seus ideais:
pan-africanismo
quilombismo
O primeiro termo, segundo Elisa, é um conceito de que o colonialismo e o processo escravagista impuseram formas de opressão e discriminação sobre todos os povos africanos e da diáspora, e que a única maneira de se superar isso é pela união de forças. Um entendimento que permeia as páginas de um dos principais livros de sua bibliografia, "O genocídio do negro brasileiro" (1978).
O segundo termo, que inclusive dá nome a outro de seus principais livros, "O Quilombismo (1980), se refere a como esses mesmos povos tão prejudicados conseguem construir a vida em liberdade a partir da experiência dos quilombos.
"O quilombismo também toma como ponto de partida para um pensamento revolucionário a própria história desse povo, a própria história dos africanos na diáspora. O quilombismo mostra como essa história de resistência pode embasar toda uma luta, mas não só a luta é a construção da vida em liberdade. Esse quilombismo para o Abdias não é só somente uma coisa que diz respeito ao povo negro, é uma proposta para organização do país", explica Elisa.
Na política, sua defesa pela igualdade racial ainda o levaria a ser exilado por 13 anos durante a Ditadura Militar, além de atuar como senador e deputado federal.
Por tudo o que produziu em vida, Abdias obteve uma série de reconhecimentos da ONU, além de ter sido professor emérito na Universidade do Estado de Nova York e doutor honoris causa em universidades como a de Obafemi Awolowo, de Ifé, Nigéria. Além disso, em 2009 foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz.
Toda essa produção e trajetória hoje é preservada pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), fundado em 1981 e com acervos reconhecidos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) pela importância internacional.
Cursos de formação, congressos e exposições por todo o país, inspiradas nos ideais antirracistas do ativista, também fazem parte do trabalho da entidade.
"O acervo documental de Abdias Nascimento é reconhecido pela Unesco em nível mundial e de América Latina como acervo de importância para o mundo. São duas chancelas. E na esfera nacional, o Conarq [Conselho Nacional de Arquivos] também reconhece o acervo documental do Abdias como de suma importância para a construção da história do Brasil. São chancelas que avalizam um histórico de trabalho de mais de 40 anos", afirma Julio Menezes Silva, gerente do Ipeafro.
Abdias Nascimento durante discurso na Cinelândia, Rio de Janeiro, em 1983
Acervo Abdias Nascimento/ Ipeafro
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